A minha morte
Da minha morte,
apesar das muitas incertezas quanto à data referida pelos evangelistas, estava
tentado a dizer-vos o ano, o mês, o dia, a hora e até o dia da semana, pois, no
dia seguinte, sábado, comemorar-se-ia a Páscoa, a grande festa judaica que já
não me deixaram comemorar: morri pelas três horas da tarde do dia três de
Abril, que era uma sexta-feira, do ano 35 da era cristã. Tinha uns quarenta
anos de idade.
Se quiserem,
acreditem nas narrativas factuais dos evangelhos e em todos aqueles sofrimentos
horríveis que me infligiram, considerando-me réu de morte, uns por blasfemo,
outros, Pôncio Pilatos incluído, por ter de algum modo atentado contra a
soberania de Roma e o seu todo-poderoso Imperador, dizendo-me rei e não o
negando, tendo suportado masoquistamente a flagelação, a coroação com espinhos,
o transporte da cruz a subir o monte do Calvário onde me iriam crucificar.
Acreditem ainda naqueles românticos episódios, primeiro do sono, depois da fuga
dos discípulos, o meu suar sangue, suor e lágrimas, o beijo do pobre Judas que
me traiu, os meus lamentos perante Deus que me abandonara em hora tão trágica...
Mas não acreditem, obviamente, em todos os fenómenos naturais descritos por
Mateus aquando da minha morte: terramotos, escurecimento do céu, cortinas
rasgando-se no Templo, mortos a ressuscitarem por todos os cantos da cidade...
Aquele Mateus bem poderia pensar que, dizendo tais barbaridades, só seria
acreditado por quem nunca iria ter, durante a vida, a luz da razão espevitada
pela Ciência e pela Verdade. Enfim, foram “limitações” dos escribas do tempo
que iriam ser bem aproveitadas por muitos, séculos fora, arrogando-se o direito
de se dizerem meus representantes, meus seguidores e de me adorarem como Filho
de Deus que não sou, ou sou e fui tanto como qualquer ser humano o é: uma
partícula do Deus da Harmonia Universal que é tudo e tudo contém. E... recordam-se?
Recordam aquela comovente cena de eu dizer ao “bom” ladrão que estava sendo
crucificado a meu lado: “Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso!”? Ah, como
gostaria que tal tivesse sido verdade e não fantasia do evangelista! Como
gostaria! Verdade para ele... Verdade para mim também!
Da ressurreição, em
que se baseia toda a Fé dos cristãos, a começar por Paulo que viveu no meu
tempo, que poderei dizer? Que é mais uma falsidade? Mais uma fantasiosa
congeminação? Uma pura invenção, imitando as lendas dos deuses solares que
ressuscitavam em cada Primavera? É, sem dúvida, o culminar das invenções
orquestradas para me fazerem o tal Cristo em que quiseram transformar-me com os
mais diversos fins. Mas, sejamos benevolentes, o principal objectivo seria, com
certeza, resolverem as suas dúvidas existenciais sobre um Além desconhecido,
projectando-se num Paraíso habitado por um Deus magnificente, e por toda a
eternidade. Então, terão direito ao nosso perdão, embora a Verdade seja a de
que não houve ressurreição nenhuma, sendo portanto, nas palavras de Paulo, vã
toda a fé que se queira construir a partir dela... Aliás, as ressurreições
referidas no A.T. ou as que me são atribuídas, sendo a de Lázaro a mais
espectacular por já estar morto havia quatro dias, as que são atribuídas a
Pedro e a Paulo ou outras quaisquer, são apenas efabulações poéticas de
metafórico significado. Nada de verdade existiu nelas!
Também não apareci
ressuscitado a ninguém! Como poderia ser, se a minha ressurreição pertence ao
domínio da fábula? Se tal tivesse acontecido, seria fenómeno a ser conhecido
por todo o Império Romano e não só em Jerusalém, onde, segundo os evangelistas,
cada um a seu modo e com diferentes personagens, eu apareci a umas quantas
mulheres e a alguns discípulos, mostrando as chagas das mãos e dos pés, comendo
e bebendo, abençoando e partindo o pão... Tudo fantasias! Quem poderá pensar
que se eu tivesse tido o poder de ressuscitar, apareceria apenas a uns poucos
dos que me conheceram e não a multidões, aos próprios que me condenaram, neles
Pôncio Pilatos, indo triunfante até ao César de Roma? Quem? Como perderia eu
tamanha oportunidade de fazer realmente descer o Céu à Terra e convencer todos
os humanos do Reino de Deus e de fraternidade universal a implementar na mesma
Terra? E então, sim: o brado da minha existência teria ecoado pelos séculos dos
séculos, todos os historiadores relatariam longamente o estranhíssimo fenómeno,
acabar-se-ia o moribundo, ao tempo, judaísmo, não teria havido lugar a Maomé
com seu Corão e a sua religião, e o mundo, hoje, seria outro completamente
diferente. Certamente muito melhor! Assim, foi realmente pena que a minha
ressurreição se tivesse ficado pela pura fantasia dos evangelistas, não foi?
Enfim, também não
houve nenhuma ascensão ao céu! Infelizmente! E também aqui bem gostaria de me
ter prolongado como indivíduo por toda a eternidade junto de um Deus sempre
renovado! Oh, se gostaria! Mas... não! Humano como todos os humanos – aliás,
não há, nunca houve, não haverá de certeza seres divinos nenhuns à face da
Terra! – voltei ao pó donde viera, dando razão ao Génesis: “Lembra-te, ó Homem,
que vieste do pó e para o pó voltarás.” É pena! Muita pena mesmo! Pena de levar
às lágrimas qualquer um! “A frustração total!” –gritareis vós. Certo! Mas que
havemos de fazer se esta é a inexorável Verdade, a única Verdade acerca da
condição humana? “Ah, como nos deixas sem nenhuma fé, sem nenhuma esperança,
sem nenhum sentido para a vida que, em breve, se acabará! Não! Não te queremos
ouvir! Vai-te e não fales mais!” – direis ainda.
Sem resposta, com a
voz se me embargando de vos ter deixado nessa frustração da não existência de
um Além, de uma eternidade, de um Paraíso e nele um Deus magnificente, só me
resta despedir-me de vós que, apesar de tudo, tivestes a paciência de aqui
estar comigo. Adeus, até à... eternidade onde me encontro, eternidade que
existe em toda a parte e em parte nenhuma. A “minha” eternidade, a eternidade
de todos! Nem céu, nem inferno, nem Deus nem o Diabo neles! O... NADA! Ou... o
TUDO, pois permaneço em moléculas de outros seres que “ansiavam”, na ordem
natural das coisas, pela minha morte, para de mim “herdarem” átomos e moléculas
que lhes dão o ser e a vida que agora possuem. Assim, sou eterno, sou, não como
indivíduo que já fui, mas nesses seres, outros que não eu, que me perpetuarão
pelos séculos dos séculos, enquanto houver tempo, que forçosamente se perderá
na eternidade!...
FIM
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