PARA ALÉM DO FIM
Cinco momentos de reflexão
II
Fundamento das nossas dúvidas, as dúvidas que estão na base desta "Vida de Cristo" narrada pelo próprio.
Momentos significativos da História
O Novo Testamento, documento em
que a Igreja Católica e as igrejas cristãs se baseiam para apregoar o seu Jesus
Cristo, enferma dos mesmos handicaps de muitos dos documentos antigos que
chegaram até nós: conseguimos datá-los aproximadamente mas deles apenas temos
cópias tardias cuja fidelidade ao original facilmente se pode pôr em causa.
Quanto ao N.T., o caso é mais sério porque se trata de textos que visavam
implementar uma nova religião que nascera como mais uma seita no seio do fértil
berço judaico propenso, naquele tempo, a tais invenções. Diz Cullmann, no seu
livro Formação do Novo Testamento: “Não temos nenhum documento original do Novo
Testamento, mas cópias. Os manuscritos completos mais antigos que possuímos
remontam ao séc. IV. Deixando à parte alguns fragmentos, são cerca de 300 anos
que separam a redacção original do texto conservado. Tal espaço de tempo
poderia fazer-nos duvidar da autenticidade estrita desses textos. De facto, de
cópia em cópia, lograram introduzir-se deformações e impor erros.” Aliás,
dentro do próprio cristianismo, nasceram muitas igrejas, contando-se, no tempo
de Constantino (séc. IV), entre outras, a grega, a de Antioquia, a de
Alexandria, a de Éfeso, a copta, a gnóstica, todas divergindo da de Roma onde o
bispo, já se apelidando de papa e com o apoio do imperador, tentava impor a sua
hegemonia. Genericamente, o grupo galileu foi um movimento dentro do judaísmo
que visava passar a mensagem de uma relação mais espiritualizada entre o Homem
e Deus, defendendo também o fim dos tempos e a vinda de um Reino de Deus, Reino
de justiça, paz e a fraternidade entre todos os Homens, já que eram todos
filhos de Deus.
Pretendendo estabelecer uma
datação dos escritos do N.T., teríamos por ordem de antiguidade, segundo os
estudos mais recentes:
1 – Cartas de Paulo (década de 50). Só lhe interessa a figura de Cristo
como divino, nada de humano sendo mencionado. 2 – Cartas de Pedro e de Tiago
(década de 60). É o mesmo Cristo divino que é apregoado. 3 – Cartas de João,
Judas (na mesma senda das anteriores) e o Apocalipse (que deve ser
contemporâneo da destruição do Templo em 70). 4 – Carta aos Hebreus, de autor
desconhecido. Já são apresentados alguns dados da figura humana de Jesus,
considerando-se, por isso, uma transição para os escritos evangélicos.
Certamente escrita antes de 70 pois não referencia a destruição do Templo. 5 –
Evangelho de Marcos, década de 70. O seu Pequeno Apocalipse terá influências do
momento: guerra judaica (66-70), destruição do Templo, incêndio de Jerusalém em
70. 6 – Evangelho de Mateus, década de 80. Copia e aumenta Marcos, com
elementos inventados ou retirados da transmissão oral. 7 – Evangelho de Lucas,
década de 90. Tendo também Marcos como fonte original, é sinóptico com Mateus,
explanando pormenores nos domínios da infância de Jesus e da vida de Maria. 8 –
Actos dos Apóstolos do mesmo Lucas, década de 90. Dedicado às actividades
sobretudo de Pedro (até ao cap. XIII), depois de Paulo; este não é considerado
apóstolo como Paulo se considerava a si mesmo nas cartas, cerca de 30 anos
antes, mas rabino fiel à lei mosaica. 9 – Evangelho de João, pelo ano 100.
Demarca-se dos três primeiros pela sua cristologia: Jesus Cristo é o Filho de
Deus feito homem e veio como Logos para revelar o Pai.
É interessante notar que os
primeiros padres, como Clemente de Roma, Inácio, Policarpo, que escreveram
entre 90 e 130, não se referem nem às cartas nem aos evangelhos, certamente por
desconhecimento: aqueles documentos circulariam apenas dentro das comunidades
para as quais eram escritos, não sendo portanto partilhados com outras.
Muitos outros textos sobre
Jesus apareceram, mas de menor qualidade tanto literária como doutrinal. São os
apócrifos – séc.s II e III – que foram sempre rejeitados pelo cânone dos livros
aceites pela Igreja como de inspiração divina. Entre eles, destaca-se o
Evangelho de Tomé cujo texto foi descoberto em 1945, em Nag Hammadi, Egipto, e
que, segundo alguns estudiosos, será anterior aos evangelhos sinópticos,
tendo-se estes inspirado nele. A sua leitura sugere-nos uma colectânea de
aforismos ou sentenças, máximas atribuídas ao Mestre Jesus e expressas em
trocadilhos cheios de significado uns, inócuos ou incompreensíveis outros,
alguns rondando o nonsense: “Toda a mulher que se fizer homem entrará no Reino
dos Céus.”
O estabelecimento do cânone dos
livros ditos inspirados por Deus não foi nem fácil nem pacífico. Pelo
contrário. Sobretudo no que se refere ao N.T. Do A.T., já havia o cânone
judaico estabelecido no séc. I a.C. e a Igreja limitou-se a acrescentar mais
sete que lhe “pareceram” merecer tal estatuto. Estão neste rol os citados
Livros da Sabedoria e de Daniel. Havia também a Versão dos Setenta ou
Septuaginta, do séc. III a.C., tradução para grego do A.T. atribuída a setenta
sábios iluminados da comunidade judaica de Alexandria. O cânone oficial dos 27
livros do N.T. só foi estabelecido em 397, no Concílio de Cartago, tendo sido
muito mais tarde, no Concílio de Trento (1545-1563), definitivamente aceite
pela Igreja Católica a versão da Vulgata de S. Jerónimo (347-420), padre que
traduziu para latim, do grego o N.T. e do hebraico o A.T. Antes da Vulgata, e
contemporaneamente, havia inúmeras traduções, variedade de que se queixava S.to
Agostinho (354-430), e que chegaram até nós em documentos dos sécs. IV, V e VI,
constituindo o que se designava de Vetus Latina. A primeira luta oficial pela
separação entre Evangelhos apócrifos e canónicos deu-se no Concílio de Niceia,
325, contando-se a propósito as mais bizarras histórias. O Concílio de Niceia
foi o primeiro concílio ecuménico e um dos mais importantes para a Igreja
Católica. Convocado pelo imperador Constantino, com o fim de unificar a Igreja
cuja religião queria impor a todo o império, nele participaram mais de 300
bispos. Três magnas questões ocuparam os participantes: a consubstancialidade
de Jesus Cristo com Deus, como Filho, a existência do Espírito Santo e a
consequente Santíssima Trindade. Os muitos bispos que não apoiaram nem
concordaram com tais “divinas” inspirações, negando pura e simplesmente a
divindade de Jesus, como os arianos, foram expulsos, excomungados, perseguidos
e exilados. É neste concílio que é fundada oficialmente a Igreja Católica, com
a sua doutrina teológica que perdura no Credo niceno, pouco já guardando da
mensagem do Jesus dos Evangelhos, podendo dizer-se com alguma ironia que
Constantino foi o seu primeiro Papa. A guerra trinitária, no entanto, continuou
e só se impôs definitivamente, em 381, no concílio de Constantinopla convocado
pelo imperador Teodósio, tendo, mais uma vez, os contestatários sido
excomungados e perseguidos.
Que conclusão poderemos tirar
deste curtíssimo mas significativo acervo histórico? – Novamente que toda a
documentação em que a Igreja se baseia para impor o seu Cristo tem uma base
histórica extremamente frágil, quer ao nível da existência de um duvidoso
Jesus, quer ao nível do Cristo divino, ou do Jesus mitificado em Cristo,
nitidamente fruto da fantasia dos actores dos primórdios do cristianismo,
constituindo-se o grupo galileu como uma seita religiosa dentro do judaísmo. O
movimento cristão, mais tarde com a igreja de Roma à cabeça, iria ter um
sucesso retumbante graças aos ventos favoráveis do poder político em que se
apoiou, pontificando Constantino, tendo-se este servido do cristianismo para
unificar o Império... Outra conclusão interessantíssima é que o Jesus
histórico, não passando o nível do humano, embora com carisma especial, só
pretendeu dar uma pedrada no charco da hipocrisia em que viviam as classes
religiosas do tempo, pregando um Reino de paz e de justiça, um Reino de
fraternidade universal, sendo ricos e pobres todos igualmente Filhos de Deus...
mas sem qualquer intuito de formar uma religião e – muito menos! – de se
arrogar o título exclusivo de “Filho único” desse mesmo Deus.
Dou aqui as boas-vindas a Lúcia Tânia.
ResponderEliminarCaríssima Lúcia, e se interessa pelo assunto, pode divulgar o blog, pois é sério, utilizando argumentos o mais fiéis possível ao real dos factos e dos documentos existentes, para provar tudo o que se afirma sobre Jesus a quem chamaram de Cristo e a todo o Cristianismo, mormente a religião católica, denunciando a falsidade dos seus fundamentos "divinos".
Sentido abraço.
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