PARA ALÉM DO FIM
Cinco momentos de
reflexão
IV
Fundamento das nossas
dúvidas, as dúvidas que estão na base desta "Vida de Cristo" narrada
pelo próprio.
A
alma humana não pode ser imortal nem... eterna
Razões lógicas, ontológicas e históricas (também
muito sinteticamente: são incontáveis as páginas que filósofos de todos os
tempos dedicaram à alma humana, tentando encontrar-lhe o âmago e a essência sem
jamais o conseguir, vindo as religiões a apropriarem-se de algumas dessas
ideias e a defenderem a sua imortalidade com a consequente eternidade.)
1 – Lógicas:
Qualquer ser provido de alma – definindo-se
alma como “O sopro vital”, pertencente ao reino do invisível, do espiritual e que,
por isso, não se sente, não se vê, não se apalpa, mas apenas se percebe pelos seus
efeitos, quer intelectuais, quer emocionais, distinguindo-se ainda a racional
da animal e da vegetal – adquiriu essa alma no acto de nascer ou de ser
concebido. Logicamente, esse ser possui um “sopro vital” aparecido num dado
momento do tempo. E é indubitável que o facto de começar um dia tem acoplado a
si, impreterivelmente, inexoravelmente, o reverso: acabar num outro dia mais
distante. Se quisermos, ao acto de nascer está indelevelmente ligado o acto de morrer.
Pensar eterno um ser começado no tempo, seria admitir o impossível: uma meia
eternidade, o que forçosamente se perderá nas fronteiras do mito e da
fantasia...
2 – Ontológicas:
O “sopro vital de um ser” só existe
enquanto é suporte do mesmo ser que o contém. Quando este deixa de existir, o
sopro desaparece com o mesmo encantamento como apareceu no acto de ser. Seria
absurdo que subsistisse para além dele! Ou, dito de outro modo: um corpo vivo
que morre arrasta forçosamente consigo o sopro vital que o animava: a alma. Mesmo
que se considere espiritual! Mesmo que se saiba que o cérebro – todo ele
matéria a ter de estar em pleno desempenho para que a alma “funcione” – produza
ideias, emoções, sentimentos que nos aparecem revestidos de imaterialidade!
3 – Históricas:
Quando falamos em “as almas dos
antepassados, as almas dos nossos entes queridos, as almas do outro mundo”,
etc., etc., sentimo-las como que realidades bem distintas, bem vivas e, por
isso, realmente existentes, independentes dos corpos que as sustiveram, vivendo
algures no etéreo, na fantasia, no pensamento individual ou colectivo,
figurando-se-nos, com facilidade, aqueles corpos. Mas essas almas não passam
disso mesmo: figurações, fantasias, evocações, memórias que existirão apenas enquanto
perdurarem na mente de alguém. Depois, esfumar-se-ão, desaparecerão
inexoravelmente no... nada, como aconteceu com as almas dos muitos biliões de
seres inteligentes que já viveram a sua saga de vida na Terra, desde que o
Homem é Homem, dos milhões que diariamente vão desaparecendo. Então, se nada
delas resta e apenas permanece a recordação de algumas delas na memória
individual ou colectiva – e apenas por um pouco de tempo – será totalmente insensato
decidirmo-nos pela imortalidade e consequente eternidade da alma humana.
(No entanto, permitindo-nos voar um pouco
nas asas da filosofia, temos forçosamente de nos embrenhar na controvérsia de
saber se aquilo a que chamamos alma é ou não a expressão do nosso cérebro,
repositório de todas as prerrogativas atribuídas à alma, questionando,
portanto, a sua imaterialidade. Afinal, o que é a alma humana? – Quer no
sentido clássico, quer no religioso, a alma humana é, além do “sopro vital”
comum a todos os seres vivos – a anima dos latinos –, a “entidade” que
se manifesta na inteligência e capacidade de raciocinar, nas emoções, no carácter,
na capacidade percepcional da informação que os sentidos lhe fornecem, na capacidade
de querer e de decidir, na consciência de cada um, havendo, desde a
antiguidade, a discussão em torno de saber se ela é autónoma e subsiste por si
– a psyké dos gregos. Mas basta ler os estudos dos neurologistas –
citemos, por exemplo, Damásio nos seus livros “O Erro de Descartes” e “O
Sentimento de Si” – para nos apercebermos de que todas as componentes
atribuídas à alma estão no cérebro e que, quando qualquer função do cérebro é
afectada por trauma ou doenças, lá se vão as respectivas prerrogativas da
alma... A dicotomia alma-corpo torna-se mais evidente na morte: corpo sem vida
para um lado, a alma para outro. Ou morreu com o corpo que a sustinha, deixando
de “soprar” vida, de manifestar-se em vida no corpo com o qual foi una e
indivisível? Como sopro vital, ninguém duvida de que deixou de vivificar o
corpo; mas sempre dependeu, mesmo na sua essência, do bom funcionamento dele:
“Que me importa o mundo se a digestão me pesa?” Inteligência e emoções, o
carácter, a vontade ou o livre arbítrio, as capacidades de perceber e de
decidir e até a consciência de si podem soçobrar perante um abuso gastronómico!
Quando alguém sofreu morte cerebral – situação diferente da do estado de coma
ou da de vida puramente vegetativa – perdeu todas as capacidades que se
manifestam com e pela alma: tem activas simplesmente as funções vegetativas se
se mantiver ligado a um ventilador que respire por ele. Afinal há um corpo que
funciona sem... alma! No entanto, estes estados de “quase” morte ainda
apaixonam muitos estudiosos, curiosos por saber o que se passará nesse tremendo
limiar em que todos os seres vivos um dia forçosamente se encontrarão. A clássica
dicotomia corpo-alma, tanto do agrado dos muitos que, ao longo já de milénios,
se dedicaram ao estudo da alma: Platão, Aristóteles, S.to Agostinho, S. Tomás
de Aquino, Descartes – para citar apenas os mais importantes – sendo esta a
forma daquele, torna-se difícil de explicar à luz da Ciência actual; realmente,
cada um tem o corpo e a alma que a genética lhe deu; os genes determinaram um e
outro no acto primordial da vida do novo ser. Ao humano juntou-se-lhe a
racionalidade que teve o condão de refinar a expressão das emoções e do carácter,
suplantando todos os outros animais. Parece que só na memória o elefante lhe
levará vantagem, não falando, claro, no campo sensorial!... Comparando tal
dicotomia com a realidade, lembra-nos o caracol que não vive sem a sua carapaça
nem esta interessa sem que aquele exista e se movimente dentro dela e com ela. Sendo
assim, a “forma” – a alma – só é possível visualizar-se, activar-se, ou seja,
existir e subsistir, através de e com o seu suporte – o corpo.)
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