III
A situação histórica
Na Palestina do meu tempo, uma das famílias mais preponderantes era a dos Herodes. O primeiro deles que interessa para a minha história é Herodes o Magno que reinou, desde o ano 37 a.C. até ao ano 4 a.C., com o apoio dos romanos a quem devia o título de rei dos Judeus. Sanguinário, embora grande construtor, devendo-se-lhe a restauração do Templo, ser-lhe-á atribuída pelo evangelho de Mateus a matança dos inocentes para se livrar do novo rei ou Messias que lhe foi anunciado por uns magos vindos do Oriente. Pura invenção do evangelista, como já referi. Sucede-lhe um outro Herodes, seu filho, o Antipas, que viria a provocar um grande sururu ao apaixonar-se por Herodíade, mulher do seu irmão Herodes Filipe, de cujo enlace havia uma filha já casadoira de nome Salomé. Para poder casar-se com ele, e não partilhar o mesmo leito nupcial, Herodíade obrigou-o a repudiar a legítima esposa. Ora esta era filha do poderoso rei Aretas e, vendo-se repudiada pelo marido, foi queixar-se a seu pai que, cioso dos direitos e pergaminhos da filha, logo provocou Antipas criando, com os seus soldados, conflitos de fronteiras. Os conflitos rapidamente se avolumaram, chegando ao confronto e à invasão da Galileia, com declaração de guerra total. Antipas só não foi derrotado porque vieram em seu auxílio as tropas romanas estacionadas na Síria, levando assim a melhor sobre Aretas que foi destituído pelo imperador. Entretanto, tetrarca e administrador da Galileia e da Pereia desde 4 a.C., reinado que ainda se iria prolongar até 39 d.C., Antipas acedeu a um estranho pedido da sua amada. Tudo se passou, segundo Mateus 14,6, no baile da festa do seu aniversário: lançando Herodíade para os braços do rei a sua bela filha Salomé, diz-lhe ele, de cabeça perdida e em alta voz para que o mundo testemunhasse a generosidade: “Pede-me tudo o que quiseres, minha bela, que eu to darei!” A jovem, com o sorriso mais malandro do mundo, já industriada na arte de cativar os homens, disse a pedido da mãe: “Quero que me sirvas, num prato, a cabeça de João Baptista!” Estranhou o pedido Antipas. Achou bizarro, estrambólico, estapafúrdio mesmo, mas compreendeu, expelindo um “Ah!...” É que João Baptista era um empecilho ao seu casamento com Herodíade, já porque não se cansava de anunciar a toda a gente: “O Reino de Deus está próximo! Convertei-vos e arrependei-vos, pois o machado encontra-se junto à raiz da árvore. E toda a árvore que não der bom fruto será cortada e lançada no fogo que nunca se extingue.”, já porque censurara abertamente Antipas, dizendo-lhe: “Tu cometes pecado e serás réu, anátema de Javé, se te casares com a mulher do teu irmão!”. O rei, não esperando tão estranho, tenebroso pedido, ficou por momentos perplexo, franziu o sobrolho, arregalou os olhos. Não podendo, no entanto, recusar aquela enormidade, e para ficar tranquilo com a sua consciência, cumprindo a palavra dada, invocou para si a questão da pax publica, isto é, a manutenção da ordem entre o povo a que se obrigara perante os romanos ocupantes. E esta era tarefa realmente importante a cumprir, juntamente com a da recolha dos tributos pagos religiosamente a César, o todo-poderoso imperador de Roma que, no seu caso, foram vários, desde Octaviano Augusto que se tornara imperador após a batalha de Actium, em 31 a.C., passando por Tibério que sucedeu a Augusto em 14 d.C., e ainda, nos dois últimos anos do seu reinado, Gaio Calígula que sucedeu a Tibério em 37 d.C. Aliás, foi Calígula que em 39 veio a destituir e a desterrar Antipas, acusado de conspirar contra Roma. Ora João Baptista era nitidamente um agitador e tinha cada vez mais prestígio e poder junto das massas de seguidores, também eles acreditando num fim último muito próximo e na vinda do Reino de Deus, expressão inspirada que ia ao encontro das expectativas do povo de Israel: para uns, a restauração do reino das doze tribos com a ajuda de Javé, como antigamente; para outros, um reino do Céu desconhecido, mas tremendamente apelativo. Tal movimento poderia facilmente degenerar em rebelião e criar-lhe problemas a si e ao seu poder real. Assim, decidiu, bradando para os seus lacaios: “Em nome da pax publica, que se prenda e se corte a cabeça a João Baptista!” Grande foi o burburinho pela sala. Mas logo, remetendo-se ao silêncio, todos se conformaram, compreensivos, com a real ordenação! Claro que a decisão só foi tomada pela premente exigência de Herodíade e o solene comprometimento do rei. Não fora isso, não tivera a paixão ocupado em Antipas o lugar da razão, e João Baptista, apesar de suposto agitador de massas, ainda teria vivido muitos mais anos para apregoar o fim dos tempos, tornando-se certamente o meu braço direito em tão difícil missão. É que também eu acreditava nesse fim, chegando o evangelista a pôr na minha boca: “Não passará esta geração sem que tudo isto aconteça!” Ora, o meu “isto”, obviamente, não se concretizou, nem naqueles tempos, nem nestes tempos...